segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Blind Beast: Considerações da dor no Cinema japonês

(Yasuzo Masumura filming Hanaoka Seishu no Tsuma, 1967)


Por Ana Carolina de Moura Delfim Maciel
[Portuguese Only]

Corte fora meus braços.

Minhas pernas também.
Corte meu corpo em pedaços.
Aki

O presente artigo tem como objetivo analisar o filme japonês Cega obsessão (Moju, 1969) de Yasuzo Masumura (1924-1986), uma adaptação cinematográfica do escritor Rampo Edogawa (1884-1965), considerado um dos mais influentes escritores de mistério do Japão. Por meio de uma narrativa repleta de simbolismo Cega obsessão materializa representações da dor em atos extremos de sado-erotismo sendo que a dor “motriz” da trama, ou seja, a cegueira, se materializa no desfecho do filme como uma redenção possível, como uma fuga ao grotesco mundo real.
Cinema japonês, arte, mutilação.


“Cega obsessão”

Em um homem que sente uma dor física violenta (imagino a dor mais intensa possível, a fim de que o efeito seja mais evidente), os dentes cerram-se, as sobrancelhas contraem-se fortemente, a fronte enrugase, os olhos encovam-se e reviram com violência, a boca emite gritos e gemidos entrecortados e o corpo inteiro treme. O medo ou terror, que é uma percepção da dor ou da morte, manifesta-se exatamente pelos mesmos efeitos, com uma violência proporcional à proximidade da causa e à fragilidade do indivíduo (…)(1).
-Edmund Burke

Em 1969, ano da estreia de Cega obsessão, o cineasta Yasuzo Masumura afirmou em entrevista ao Cahiers du cinéma que se considerava pertencente ao espírito de uma geração “fim de guerra”, cuja violência o havia impactado e gerado uma relação de insegurança e descrença na possibilidade de harmonia na sociedade japonesa (2). Graduado em Filosofia pela Universidade de Tóquio em 1950, Masumura foi estudar no Centro Sperimentale Cinematográfico de Roma; quatro anos mais tarde retornou ao Japão, onde trabalhou como assistente de Mizoguchi e de Ichikawa Kon nos estúdios Daiei.
Num intervalo de treze anos – ele estreou na direção em 1957 – Masumura realizou quarenta e cinco filmes. Apesar dessa vasta produção, nos dias atuais é um cineasta praticamente desconhecido, ofuscado pela fama de alguns de seus conterrâneos. O filme Cega obsessão se insere na vasta produção de Masumura nos estúdios Daiei, onde permaneceu até seu fechamento (1971).
O clima de pós-guerra enfrentado por sua geração o inspirou, e como resultante disso temos uma cinematografia repleta de simbolismos, em que a figura feminina detém suma importância. Para ele: “É considerando a mulher como assunto que podemos mais facilmente exprimir a humanidade”, enquanto que a figura masculina reduz-se a uma condição passiva tal qual “um animal que vive para sua fêmea”.(3) Segundo o cineasta os japoneses, quando comparados aos ocidentais, são bem mais fantasiosos, ignorando noções tais como “indivíduo” e “razão”(4.) Inserido nesse binômio feminino-masculino, o sexo – mais que uma mera consumação do prazer carnal – detém uma força subversiva em sua cinematografia. Sob suas lentes o erotismo é representado como “qualidade inerente” à mulher enquanto ao homem resta a condição de “sombra”.
Assim, por meio do culto à figura feminina, à violência (herança da guerra) e ao erotismo, e optando por uma narrativa profundamente antirrealista, Masumura assume uma “estética grotesca” (como ele mesmo a qualificou) em que o sangue é uma constante: “(...) o sangue tem uma ligação muito íntima com o sexo. Eu acho que tem um ligação mística entre o sangue e o sexo feminino, o homem sucumbe à mulher”.


Breve descrição do enredo (5)

Não há dúvida de que, copiando, um homem medíocre jamais fará uma obra de arte – é que na realidade, ele olha sem ver (...). O artista, ao contrario, vê – o que quer dizer que seu olho, enxertado em seu coração, lê em profundidade no seio da Natureza. Eis porque o artista deveria acreditar apenas em seus olhos.
-Auguste Rodin

Em Cega obsessão um casal dá vazão a fantasias autodestrutivas. Uma vez que a privação do olhar impulsiona a trama, o filme resulta numa experiência tátil e sensorial em que a sensibilidade do toque enclausura os protagonistas numa progressiva simbiose claustrofóbica e suicida. A narrativa se estrutura como uma trilogia: três personagens, três locações, três desejos: visão, tato e sexo.
O espaço onde se passa a maior parte da trama – o ateliê do escultor – é um local obscuro onde os atores se movem ou rastejam. O espectador não tem dimensão da sua amplitude pois jamais consegue vislumbrar o espaço inteiramente, apenas de maneira fragmentada. Os diálogos entre os protagonistas são curtos e sem pretensão de profundidade, enquanto que paralelamente há uma narração enunciada pela personagem Aki em que ela assume uma postura de julgamento.
Na primeira sequência do filme a câmera enquadra fotografias da modelo Aki (Midori Mako) dispostas numa galeria de arte onde ela surge em close, nua, com partes do corpo acorrentadas e em fotomontagens. Quando o plano se abre Aki entra em cena e surpreende um cego, Michio (Funakoshi Eiji), apalpando sofregamente uma estátua que é, na verdade, um protótipo dela mesma. Na narração em off ela percebe a simbiose: “Era como se a estátua e meu corpo fossem um só. Eu sentia as mãos dele enquanto ele tocava a estátua. Era como se suas mãos percorressem todo o meu corpo.”
Na cena seguinte, Aki está em seu apartamento e aguarda a chegada de um massagista. Quem chega – embora ela não reconheça – é Michio. Ela se dirige a ele com rispidez e ordena como deseja a massagem: “Coloque força nisso, eu gosto forte, se não dói não me satisfaz”/ “Mais forte que isso!” Esse é o primeiro momento na trama em que ela associa dor ao prazer, algo que paulatinamente atinge o ápice.
Enquanto Michio a apalpa com erotismo, tal como o fez com a escultura, inicia um diálogo em que ele diz que a “reconhecia” como a modelo “daquelas fotos sensacionais”. Num sobressalto ela percebe quem ele é, tenta desvencilhar-se mas é dopada. Quando Aki desfalece surge o terceiro personagem do filme, a mãe de Michio, que o auxilia no rapto.
O ateliê/moradia e cativeiro é um cenário impactante e que vai revelando-se aos poucos. Michio surge na escuridão sob o foco de uma lanterna que desvenda seu rosto em meio à escuridão. Conforme ele avança surgem, incrustadas pelas paredes, inúmeras próteses de fragmentos de corpo, o que remete a ensaios para algo grandioso, um monumento que jaz aprisionado em pedaços gigantescos e desconexos. Essas imagens assemelham-se aos relicários anatômicos de ex-votos, causando a sensação de fragmentos mutilados e aprisionados nas paredes, uma sugestão visual que antecede o desfecho da trama.
Quando Aki desperta, vislumbra os inúmeros protótipos. Nesse momento Michio toma a palavra e começa a narrar suas agruras: “Ser cego é miserável”, apesar disso, como que para compensar tal chaga, ele tem o prazer proporcionado pelo tato. Aki tenta escapar e inicia-se uma perseguição, enquanto o foco de luz vai desvendando fragmentos de esculturas gigantes, partes do corpo multiplicadas: orelhas, seios, bocas, pernas e braços. Dentre tantos fragmentos surgem, no centro do ateliê, dois enormes corpos femininos. Aki caminha sobre eles e os utiliza como esconderijo. Michio revela que pretende instaurar uma arte “revolucionária”, ou seja: “a arte do toque”. Para poder desenvolvê-la, contudo, ele precisava que ela aceitasse ser sua modelo; Aki reage com violência e ele retruca: “Vá em frente, me bata, me chute. Serei seu escravo. Você pode fazer o que quiser comigo. Apenas me deixe tocá-la”.
Fingindo aceitar posar, Aki planeja uma fuga mas é surpreendida pela mãe de Michio. Nesse momento surge a primeira reviravolta na trama: simulando cordialidade, ela o induz a beber e o incita contra a mãe; eles se beijam e ela o deixa tocar seus seios. Isso é o estopim para que a mãe resolva expulsá-la enquanto Michio dorme, mas ele desperta e têm uma discussão; acidentalmente sua mãe cai e morre.
O erotismo velado que permeia a trama aflora após essa morte, quando Michio e Aki perdem a virgindade. A partir de então, eles iniciam uma busca incessante pela dor, provocada inicialmente por chicotadas e mordidas. Quando a escultura finalmente fica pronta e Aki poderia finalmente partir, ela resolve ficar, pois havia “desenvolvido uma afeição por ele”, constatando que havia “desistido daquele mundo”, e assim que toma essa decisão ela é tomada subitamente pela cegueira.
Assim, a cegueira se impõe como uma fuga do mundo exterior, como um mergulho rumo ao extremo das sensações dolorosas. Uma vez cega, Aki passa a agir impulsionada por um “desejo insaciável por mais prazer” e, dominando as ações, faz com que Michio obedeça aos seus instintos masoquistas. Insaciável com as dores causadas pelas chicotadas, ela ordena que ele a morda “até sangrar” para em seguida beber seu sangue: “Nós começamos a ter prazer por meio de mordidas, de arranhões, e de bater nossos corpos em fúria por sensações. A dor prazer de unhas, dentes e punhos... Quanto mais eu sofria, mais eu implorava” (Aki).
Conforme extrapolam os atos de violência, seus corpos vão ficando marcados por feridas. Num ambiente escuro e progressivamente putrefato, eles vivem um “idílio” pautado pela dor e pelo prazer dela oriundo: “Eu tinha chegado ao ponto em que a lei natural e a sensação de prazer colidiam. Nós não conseguíamos parar. Nós passamos de utensílios inofensivos para facas, na tentativa de obter nosso êxtase”. (Aki) Uma vez introduzido o objeto cortante, ela passa a ordenar sua própria mutilação: “Corte-me, corte-me rápido. Me machuque, me machuque mais. Cubra-me com cicatrizes (...). Corte-me mais fundo”.
Quando se encontram no limite das forças, Michio constata resignadamente que a morte deles era iminente. Pouco antes de sucumbir às mutilações, Aki diz que não se arrependia de nada, pois havia experimentado “uma alegria que a maioria das pessoas sequer sabe que existe”, declarando-se “pronta para morrer a qualquer momento”. Obedecendo às suas ordens, Michio a corta em pedaços e se mata.

(Môjû, 1969)


Masumura e a cinematografia japonesa

Muita coisa de sua imaginação tinha murchado junto com seus olhos; e eles criaram para si mesmos novas imaginações com seus ouvidos e dedos cada vez mais sensíveis.
-Herbert George Wells

A obra de Masumura insere-se entre as décadas de 1950/60, momento em que ocorre um redimensionamento na cinematografia japonesa, quando surge uma nova geração de cineastas combatendo “tabus da moral, do sexo e da política”, denominada “nouvelle vague japonesa”.(6) Os estúdios Daiei (1942-1971), onde Masumura trabalhava, eram uma das cinco maiores empresas cinematográficas do Japão (7), contudo eram “pobres” e seus funcionários “viviam como trabalhadores braçais”(8).
Nos anos 60 alguns cineastas dessa nova geração rebelaram-se contra as “amarras” dos estúdios, decidindo seguir carreira independente. Embora inserido nesse contexto de rompimentos, Masumura permanece como funcionário da produtora Daiei, uma opção “conservadora” que provocaria, segundo Lúcia Nagib, preconceito por parte dos cineastas independentes. Isso talvez justifique por que o cineasta – considerado por Nagib como o responsável pelos filmes “mais vigorosos” do cinema japonês – tenha permanecido “pra- ticamente desconhecido no Ocidente”. Os anos passados na Itália, ainda segundo a autora, foram dedicados a um aprofundamento teórico que possibilitou um distanciamento dos valores morais e sentimentalismos “que imperavam no cinema japonês até então”(9).
Ao longo da década de 1970, dois de seus filmes – La chatte japonaise e L’ange rouge – foram exibidos comercialmente na França. Numa extensa matéria publicada na prestigiada revista Cahiers du cinema, a crítica Sylvie Pierre qualificou a obra de Masumura como “original” e “aberrante”. Em sua análise é possível reconhecer aspectos comuns a Cega obsessão, notadamente quando ela enfatiza algumas características narrativas dos filmes, quais sejam: o erotismo feminino, a impotência dos personagens masculinos, o prazer advindo da amputação de membros e a libertação sexual atingida após a morte da progenitora.(10)
Nos anos 70 a produção de Masumura foi analisada pelo italiano Carlo Scarrone na revista Filmcritica. Segundo o autor, a presença do sangue nos filmes de Masumura associa-se à podridão, a uma “ejaculação negra”, fruto da “violência desumana”, tanto individual como coletiva (11). Desvinculando o cineasta tanto da tradição clássica japonesa quanto da norte- americana, Scarrone busca desvendar a originalidade de suas opções narrativas e estéticas:
O significante é continuamente corrompido e devorado por uma matéria “suja” que, se propondo pelo excesso, descarta qualquer possibilidade de visão idealista: estamos diante da presença do corpo (...) e das suas funções matéricas e incontroladas, dos gritos e dos gestos excessivos, da violência que nasce da ingovernabilidade do inconsciente, e das pulsões eruptivas sem limite, mas sobretudo, diante do sangue que se espalha de filme em filme.
Corrompendo assim qualquer conceito de belo, o grotesco impera nos filmes de Masumura. Segundo o norte-americano Michael Raine, o cineasta faz com que espectadores, habituados com representações naturalistas da vida cotidiana, vislumbrem o “conflito entre o in- divíduo e a opressiva sociedade de massa”(12). Em 2000 Masumura volta a ocupar as páginas de Cahiers du cinema quando é definido pelo crítico Stéphane Delorme como um cineasta “prolífico e desconhecido”, e seu filme Cega obsessão qualificado como “magnífico”(13).

Odeio o sentimento porque no cinema japonês ele é representado de maneira controlada, harmoniosa, resignada, triste, vaga, transitória.
-Yasuzo Masumura


Sangue, mutilação, violência: leitmotives de Masumura

O sentimento tal como Masumura o representa em Cega obsessão é transgressor, extremo e metafórico; seus protagonistas são seres simbólicos: enclausurados, cegos e impotentes diante de seus próprios ímpetos, ou seja, a busca pelo desejo supremo provocado pela dor. Confinados nesse espaço claustrofóbico, Aki e Michio se movem, rastejam e se flagelam mutuamente, assumindo e incorporando a insanidade e a barbárie humanas. Suas ações são de extrema violência e motivadas unicamente pelo exercício de um prazer incessante.
Há um artigo escrito em 1954 por Masumura para a revista italiana Bianco e nero, no qual ele refaz um “perfil histórico” do cinema japonês e tece considerações sobre alguns momentos que considera “cruciais” nesse percurso, ou seja, os desastres naturais e as guerras enfrentadas por seu país natal ao longo do século xx (14). Ele menciona no texto uma falta de inteligibilidade, por parte da crítica, dos filmes japoneses: “Os críticos, especialmente estrangeiros, freqüentemente enfatizaram certos traços característicos e constantes do filme nipônico: o fatalismo, o amor pela natureza, a crueldade, a delicadeza do gosto, o misticismo e, no plano expressivo, o tempo “lento” da narração (...)”.
Ele justifica individualmente cada um desses traços, iniciando pelo “fatalismo”: “o fatalismo é a natural atitude de um povo que viveu por séculos o terror pelo inesperado, pelo imprevisível, fosse esse um gesto autoritário dos governantes – a guerra – ou uma calamidade natural – um tufão, um terremoto, uma erupção”(15).
Esse “terror pelo inesperado”, apontado por Masumura, é um sentimento que pode reduzir indivíduos a um mundo subterrâneo, onde o controle seja exercido por eles mesmos e onde possam se entregar a uma busca desenfreada por sensações extremas, tal como a trama de Cega obsessão. Assim, Masumura encadeia seu filme de tal forma que a morte passa a ser absolutamente previsível e lentamente provocada pelos protagonistas, que têm o controle absoluto da situação. Num ambiente que remete a um bunker e completamente alheio ao mundo externo, Aki e Michio assumem o lado sombrio da humanidade.
Prosseguindo em suas considerações publicadas na Bianco e nero, Masumura insere alguns aspectos da cinematografia japonesa numa secular tradição artística e literária:

Tais características fundamentais do filme japonês não são outra coisa que a exata correspondência daquelas que foram por séculos as características da narrativa, e mais ainda das artes figurativas, e que são bem diversas, por exemplo, daquelas artes figurativas do Renascimento italiano. Naquele tempo, a arte era expressão aberta e direta da paixão de um povo que criava um novo ideal de beleza em pleno acordo com as condições espirituais e ambientais realmente existentes; e o resultado foi uma arte viril, realista no senso mais nobre da palavra. A arte japonesa, ao contrário, não poderia ser além de uma violenta explosão de paixões contidas, desabafo artificioso e deformação exacerbada: o misticismo enfraquecido e feminino foram sua característica.(16)

Alguns anos separam a publicação desse texto e a estreia de Cega obsessão, mas é marcante como o filme se insere magistralmente nessa caracterização que Masumura faz da arte japonesa.

(Môjû, 1969)

Dor da guerra

Nas primeiras décadas do século XX as fotografias de guerra impactavam observadores; a escritora Virginia Woolf registrou sua emoção ao observar algumas dessas imagens:
A seleção dessa manhã contém a foto do que talvez seja o corpo de um homem, ou de uma mulher; está tão mutilado que, pensando bem, poderia ser o cadáver de um porco. Mas ali adiante estão, seguramente, crianças mortas e também, sem dúvida, o pedaço de uma casa.(17)
Registros de atrocidades humanas atraem de tal forma que Susan Sontag refletiu sobre um “desejo” secular de visualizá-los:
Parece que a fome de imagens que mostram corpos em sofrimento é quase tão sôfrega quanto o desejo de imagens que mostram corpos nus. Durante muitos séculos, na arte cristã, imagens do inferno proporcionavam essa dupla satisfação elementar.(18)
Nesse sentido o advento da fotografia traz aos registros da dor uma aura de “realismo”, algo que o cinema iria intensificar. Em Cega obsessão Masumura ruma na contracorrente desse realismo e distancia-se radicalmente de seus cânones. Ele afirmou verbalmente o trauma da guerra, mas no filme é apenas enquanto possibilidade simbólica, como uma chave interpretativa, que ela surge. Aquilo que inspirou Abel Gance a “ressuscitar” soldados de seus túmulos em J’accuse pode ser o mesmo que impulsionou Masumura a “mutilar” seus protagonistas. Pois, como afirmou Sontag, Não podemos imaginar como é pavorosa, como é aterradora a guerra; e como ela se torna normal. Não podemos compreender, não podemos imaginar.(19)
Estudos psicanalíticos analisam a dor física como o retorno de um “sofrimento antigo e que se tornou inconsciente”, atuando como um catalizador de dores futuras (20). Extrapolando a dor causada pelo flagelo físico, Cega obsessão enfoca a sordidez do comportamento humano, algo que possibilita uma analogia com a barbárie da guerra (tema que se impõe na trama unicamente como dor subliminar). O binômio guerra/cegueira já havia sido explorado em outro filme do cineasta, Seisaku no Tsuma (La femme de Seisaku. Masumura, 1965), cujo enredo narra a história de uma mulher que perfurou os olhos de um soldado para impedi-lo de partir rumo à guerra.
Sem resvalar no tema da guerra em Cega obsessão, Masumura escolhe como elemento de- tonador a produção artística de Michio, escultor medíocre que concebe formas grotescas, aprisionadas e agonizantes. Sua obsessão cega é instaurar um novo modo de perceber a arte, entretanto sua “chaga” o deixa num estado de suscetibilidade, o que permite que Aki supere sua ambição.
Numa das primeiras cenas do filme surge o nome da exposição de fotografias: Fleurs du mal. Réhabilitation par mon sexe, grafado originalmente em francês, referência explícita ao poeta Charles Baudelaire, cujo poema “O Heautontimoroumenos” pode ser interpretado em analogia direta com o filme:

Sem cólera te espancarei
Como o açougueiro abate a rês (...)
Eu sou a faca e o talho atroz!
Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada
Eu sou a vítima e o algoz
Sou um vampiro a me esvair
– Um desses tais abandonado!
Ao riso eterno condenados
E que não podem mais sorrir! (21)

Ao longo da trama o personagem Michio orbita nesse limite entre vítima e algoz, enquanto Aki, ao ficar cega e descobrir o prazer da vida tátil, passa a agir guiada pelo desejo da dor suprema e paulatinamente o induz a mutilá-la. No desfecho da trama Aki, que era para ele um símbolo da perfeição física, fica reduzida a “pedaços”, tal como os inúmeros protótipos aprisionados no ateliê. Visto que a mulher é considerada por Masumura como símbolo da humanidade, a mutilação de Aki pode ser entendida como símbolo do absurdo e da insanidade da guerra.
Traço marcante na poética baudelairiana, a cinematografia de Masumura prima pelo niilismo, pela desesperança, pela agonia e pela obscuridade humanas. O poeta e o cineasta – habitantes de tempos e espaços distintos – dedicaram-se à retórica da decadência. Walter Benjamin afirma que Charles Baudelaire “invoca os olhos que perderam o poder do olhar” (22) , uma máxima que pode ser transposta a Yasuzo Masumura.

Eu não cultuo a imagem. Eu acho que um filme deve ter uma construção, uma trama, uma evolução, enfim, sua própria estrutura. Eu não me importo com a beleza, a estética... a qual não compreenderei jamais.

-Yasuzo Masumura

Notas:
(1) Burke, E. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. Campinas: Ed. da Unicamp/Papirus, 1993, p.137.
(2) Entrevista gravada em Tóquio em 1969 e publicada na Cahiers du cinema, n. 224, outubro 1970.
(3) Masumura, Y. Cahiers du cinema, n. 224, octobre 1970, p. 17.
(4) Idem, ibidem, p. 15.
(5) A tradução brasileira não é fiel ao original sentido de Moju, que significa Besta cega, literalmente traduzido em francês como La bête auvegle e em inglês como Blind beast. Nos créditos de abertura o título surge grafado na escrita kanji e significa moju fera, animal feroz, e moju: obediência cega, submissão cega. (Agradeço a Carolina Mayumi Kojima pelos esclarecimentos da tradução do titulo original).
(6) Nagib, L. Em torno da nouvelle vague japonesa. Campinas: Ed. da Unicamp, 1993, p.15.
(7) Juntamente com Nikkatsu, Shintoho, Schochiku e Toho.
(8) Nagib, L. Op. cit., p. 21.
(9) Nagib, L. Op. cit. p. 30, 31 e 32.
(10) Pierre, S. Cahiers du cinema, n. 224, outubro 1970, p. 22.
(11) Scarrone, C. Masumura Yasuzo: La secante e la tangente. Filmcritica, ano xxix, n. 283,
Roma, marzo 1978, p. 132-133.
(12) Raine, M. Modernization without Modernity. In: Japanese cinema. USA/Canadá:
Routledge, 2007, p. 152.
(13) Cahiers du cinema, n. 550, out 2000, p. 26.
(14) Bianco e nero. Rassegna mensile di studi cinematografici, n. 15, 1954, p. 41.
(15) Idem, ibidem, p. 64-65.
(16) Idem, Ibidem, p. 65.
(17) Woolf, V. Apud: Sontag, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 10.
(18) Sontag, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 38.
(19) Idem, ibidem, p. 104.
(20) Nasio, J.D. A dor física. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 29.
(21) Baudelaire, C, As flores do Mal, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 308-309
(22) Benjamin, W. Écrits français. Paris: Gallimard, 1991, p.245

Sem comentários:

Enviar um comentário