quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Le sublime au ras de l'expérience

(Anma to Onna, 1938)

Texto de Corinne Atlan et Zéno Bianu
Tradução de Miguel Patrício


Porque amamos o haiku?
Sem dúvida pelo consentimento que suscita em nós, entre o maravilhamento e o mistério. O tempo de uma respiração (um haiku, segundo a regra, não deve ser mais longo do que uma respiração), o poema coincide repentinamente com a nossa exacta intimidade, provocando o mais subtil dos sismos.
Sem dúvida também porque ele nos confunde, porque nos faz sair da nossa dobra, rasgando uma fronha sobre o nosso olhar, recordando que a criação tem lugar a cada instante. «Salmo contra o hábito» dizia justamente Henri Pichette a propósito da poesia - "súbito arrebatamento no imprevísivel", responderiam os haikistas que buscam o desconhecido no coração do familiar.
Talvez, enfim, porque ele sabe beliscar o coração com ligeireza. Nada de pesado, nada de solene, nada de convencional. Apenas uma tremulação cúmplice. Uma sapiente simplicidade. A espontânea eclosão de uma flor de sentido.

Uma noite no templo -
a lua
a maior claridade do meu rosto

Bashô

Leiamos. Escutemos esta maneira inimitável de fazer surgir o invisível. Como uma percepção acelarada do instante. Como se a natureza, subitamente, tomasse a palavra no lugar do homem, assemelhando-se a uma extensão dele mesmo e das suas emoções. O poeta contempla a lua (ou será o inverso?) - os seus rostos reflectem-se até se confundirem. Eis o mundo oferecido àquilo que é: um espaço onde se entrelaçam infinitamente tristeza e beleza.
Segundo Bashô, um poema acabado deve revelar - ao mesmo tempo - o imutável, a eternidade que nos ultrapassa (fueki) e o fugitivo, o efémero que nos atravessa (ryûko). O haiku treme e cintila como um instante-poema, uma faísca escapada da confrontação permanente entre o presente a eternidade, um minúsculo meteorito de modéstia à escala do cosmos. Ele suspende, como se brincasse, da razão discursiva que usamos como uma muleta - com uma ambição soberana: dizer a realidade tal como ela é, traçar o território de um afinamento pacífico das formas e das sensações.

Defronte do relâmpago -
sublime é aquele
que não sabe nada!

Bashô

O haikista parece fotografar, gravar (André Breton no "Primeiro Manifesto do Surrealismo" não aconselhava aos poetas a serem «aparelhos de gravação»?) um nada simples, mas cujo relampejar irradia sem cessar. Ele não concebe, ele descobre. Ele mete o foco no ponto que está ali, agora, inesgotável do éfemero - não uma essência, mas uma dinâmica, uma energia. Longe de se servir de qualquer ponto-de-vista, ele procura um poder de visão - um novo ângulo. Quem sabe, no fundo, se o mundo visto por uma borboleta não é mais real do que o nosso, parece perguntar com insistência, um eco da célebre meditação de Tchouang-tseu (1)? Borboletas, libélulas, pulgas, moscas, pirilampos, caracóis, minhocas - esta atenção fornecida ao ínfimo, esta delicadeza face ao mundo e todas as criaturas vivas, princípio budista, se o é, presente também de uma preocupação constante do detalhe, característica da arte japonesa. Quantas cenas observadas, tanto na pintura como em literatura, como uma sebe que se atravessa, ou ampliadas por qualquer zoom? A atenção centra-se num ou dois detalhes, o mesmo que dizer, da totalidade de um conjunto - a parte tornada o todo. Perspectivas esclarecidas organizam-se, primeiro e último plano desenham a geografia iluminadora do haiku. (2)

As montanhas ao longe -
reflexo nas pupilas
de uma libelinha

Buson

Pois trata-se, ainda e sempre, de encorpar aquilo que é - velando, segundo a fórmula, «o espírito como um espelho». De cuidar-restituir, como um mesmo tempo, esses instantes em que o mundo se faz signo.

Noite sem fim -
penso
naquilo que virá daqui a mil anos

Shiki

Sem nenhuma dúvida, todo o haikista poderia fazer sua esta definição de Leang-Kiai de Tong-chan, poeta da época Tang: «Chamamos frase morta àquela frase em que a linguagem é ainda linguagem: uma frase viva é aquela onde a linguagem não é mais linguagem.» Arte da elipse e da brevidade, o haiku toma o lado da «frase viva», mas procede por decréscimo, por subtracção - por despojamento. Habitado por uma exigência de expressão absoluta, o haiku desnuda a língua até à sua moela. Para revelar sem discordar. Abordando as palavras pelas palavras, fazendo-as dizer aquilo que elas pareciam não poder dizer, ele traquina sempre nos limites da linguagem. E se ele aparece como uma expressão verdadeira de uma verdadeira vertigem, é sem dúvida porque ele se ocupa a cinzelar sem fim essa pura aporia: transmitir em palavras o silêncio.

Um mundo
que sofre
sob um manto de flores

Issa

Brevidade, dizíamos. Mesmo dentro dos seus limites, o haiku ocupa-se dos confins. É nesta retenção que a forma da poesia mais densa da história encontra a sua amplitude. A sua humildade - a sua compaixão - fazem toda a sua força. As suas poucas sílabas abrem um espaço de nascença infinita que a leitura malogra em esgotar. Um espaço de pura intensidade mental. Deve-se dizer que o leitor é convocado à sua mais viva, à sua mais verdadeira paleta sensível para completar o poema. Fá-lo ressoar. Como se a metáfora cedesse aqui o passo à ressonância - onda de um seixo de sentido, ricocheteando sobre as águas do silêncio.
No seio de um jogo constante entre contradição e expansão, entre finitude e infinitude, entre sístole e diástole, poeta e leitor partilham e abraçam um mesmo espaço. Ao trabalho de contracção do poeta - na sua qualidade de presença vigilante («criar a frieza», precisa Kawahigashi Hekigotô, um dos mestres modernos do género), concentrando, condensando todo o real num só e único instante-tempo - faz eco a percepção expansiva do leitor, atravessado subitamente por um brilho polifónico, uma espécie de momento-haiku, onde ele se reencontrará parte credora. Numa singular troca ecopoética, experiência de escrita e experiência de leitura não são mais separáveis. Existe aqui, no sentido mais forte do termo, uma partilha de estado de espírito. (3)
Assim os haikus mais conseguidos podem ser lidos e relidos, numa espécie de exaltação sempre nova. Eles erguem uma espera - para uma reabsorção calorosa. E podemos legitimamente cantar aqui um certo devastador excerto de Malcolm de Chazal:

Tu és rico?
Tenho tudo.
Já não me possuo mais.

Tais poemas não sobrecarregam nada - sobretudo um sujeito ou um ego -, eles abrem, continuam. Eles não esperam desflorar as coisas, fixando-as, mas aflorá-las (fazê-las aflorar) numa interrogação juvenil - deixá-los flutuar numa continuidade vibrante. Para o leitor atento, eles formam uma lugar de fraternidade com o sabor do mundo, um consentimento luminoso daquilo que existe:

Prepara-te para a morte
prepara-te
murmuram as cerejeiras em flor

Issa

Poemas um pouco mais do que poemas - ou um pouco menos (Barthes situava-os "na fronteira anterior da linguagem") -, eles quereriam suscitar em nós, pelo uso de um lirismo vigoroso, um sentimento do mundo como milagre. Um sentimento de abertura face à insondabilidade das coisas que parecem ter esquecido, pouco a pouco, a herança filosófica ocidental, governada normalmente por um espírito de distância frente a frente da realidade.
Se o haiku é um exercício espiritual, é no sentido em que se aprofunda o spiritus, isto é, o sopro, do mundo em nós. Ele apenas e tão só celebra as pulsações do vivo, sem jamais proibir a impertinência, nem a travessura - residentes na pena e no sofrimento.

Coração
branqueado pela chuva
carcaça batida pelos ventos!

Bashô


O ser está destinado a se desenlaçar corpo e alma, a submergir no vazio: somos joguetes (mais ou menos lúcidos) desses elementos encadeados, somos essa planície desolada ou o branco dos nossos próprios ossos. Ele não é nada, até à sua mais extrema dissonância, onde residiria o infinito. O despertar? Uma imediatez límpida, sem a maior grandiloquência. Uma imanência pronta a brotar nos lugares mais comuns. Excepto que ele não é nenhum lugar comum. Como se cada coisa na sua dimensão fugitiva revelasse a economia derradeira da natureza.

Na ponta de uma erva,
frente ao infinito do céu
uma formiga

Hôsai

O haiku propõe uma arte de viver os fosfenos do mundo e do tempo, uma escuta de todas as formas de coincidência. Ele solicita, à sua maneira, um espírito desocupado, um espírito que se deixa habitar. Ele mete em cena um eu-mundo por vezes totalmente implicado e perfeitamente disciplinado, um eu-universo, um corpo, um diapasão do espaço.

Profundo
mais profundo ainda
nas montanhas azuis

Santôka

Absorvamos estes poemas que rememoram a inquietação rilkiana de «ouvir cantar as coisas». Poemas escritos por loucos de poesia. Não impõe nada, eles oferecem, eles esticam, eles fazem brotar. Trata-se de um "reconhecimento" - eis o sentido mais profundo da palavra "satori". Eles transmitem uma sapiência louca, aplicada em poesia.

Um governador perguntava a Yo-chan (745-828): "Qual é o caminho?"
Depois de agitar um braço para cima e depois para baixo, Yo-chan perguntava-lhe: "Compreende?"
-Não.
-As nuvens estão no céu e a água nos cântaros.

Nada mais, nada menos. Deus? O interior de um vento azul, a magreza de uma mulher no Verão, um sapo que inala uma nuvem, uma peónia que explode. Uma onda, um fluxo, um abandono.
Imaginem um universo destravado, solto. Como um terreno de jogo infinito. Uma graçola, revelada em toda a sua nudez risível. Para se fazerem poetas, um Bashô, um Issa não deixarem sempre de praticar a «loucura poética» (fukyo), errância libertária dos gestos e dos olhares. Os seus poemas testemunham sempre uma confiança ilimitada no inesperado - até evocarem, por vezes, a profundidade hilariante de um Groucho Marx.

Através de um peido de cavalo
desperto
vi pirilampos voar

Issa

O haiku não esquece jamais a dança tremida da parte e do todo. Abrindo um re-encantamento generalizado, ele agradece a vida, sempre que ela se improvisa - de começo a começo. Sugerindo, solicitando - vidros luzentes como cometas, grãos de arroz galácticos - uma solidariedade universal do que vive, apesar da morte, apesar do sofrimento. Há aqui, entre intuição e atenção, um sentimento de pertença à totalidade sensível. Uma estética que é sempre uma ética - uma ética do último amor.

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Notas:
(1) Questionando a realidade da realidade, Tchouang-tseu interroga-se em abismo: «sonhei com uma borboleta, ou fui um sonho da borboleta - a menos que a borboleta tenha sonhado de mim que eu sonhava com ela, ou terei sonhado a borboleta que sonhava de mim que eu sonhava com ela?»
(2) Numa passagem do
País da Neve, Kawabata ressalta uma abelha agonizada e a Via Láctea, descrita como uma escarpa sem fim, encerrando a terra como uma encosta pura, indecifrável. Trata-se assim, para o ser humano de estar, simultaneamente, «aqui em baixo» e «lá em cima», de tomar lugar simultaneamente nos dois mundos.
(3) Este diálogo é o espírito preciso do haiku original (ver «Petite histoire du haiku», pp. 207). Um artista plástico contemporâneo como Akira Arita demonstra melhor a persistência desse lugar singular unindo artista e espectador, quando ele afirma que «a noção de finalizar ou acabar um quadro, não existe», e que ele deixa essa possibilidade e essa responsabilidade ao espectador, «dando-lhes o seu pincel».

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